10.6.13

A paixão do arminho

Lembrou-se o MC de colonizar este entreposto, que há já uns bons tempos pouco mais parece servir do que alojamento para suas rapadas performances, que devem mais ao real do que ao eixo trinitário que norteia (qual!, que SUL_qu'EIA!) este blog desde a sua incepção. Deambulação-Alucinação-Comunicação, creio que assim, nesta ordem e tudo, não serão propriamente os atributos do dito cerimonial, ou o seu fio condutor. Não admira que tanto (mais) tenha ficado por dizer por entre os entretantos das goteiras de chuva e demais elementais sinestesias.

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Ora entre as muitas cenas a fazer, parte não despicienda tem que ver com colher impressões de uns tantos livros lidos há mais ou menos dias. Bater umas tantas citações já referenciadas. Ao fazê-lo, poderei enfim tirar os tomos da secretária e devolvê-los à estante. Alguns destes, por certo aqueles que mais justificam a recolecção a fazer, têm que ver com trabalho. Nada ao acaso, porém, terão que esperar pelos romances, cuja colheita, teoricamente, demorará menos a fazer.

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Engano-me à grande com este jeito descritivo, mas não a ti, meu velho leitor. Tu sabes melhor que eu do que se trata afinal nestas delongas. Tu sabes, melhor do que eu, que há invólucros que se não devem tocar tampouco. Mais sabes ainda, esticando a pele da metáfora, que até a tambores se pode aplicar tal directiva - e não sob a ameaça do ruído. Ninguém é o xamã de si próprio.

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Entre meros três apontamentos decorrentes de leitura que conta já quase um ano, quis o destino recapitular a meus olhos a paixão do arminho. Relendo o par de páginas que a introduz, que a evoca, algo se rela também, não sei, não sei:


- Mas pense nele, em seu cunhado, na sua situação ...
- Pense?
- Sim! não tem pena dele?
- Sim, tenho. E por isso o ajudo e o amparo. É como outro meu filho.
- Ajuda-o..., ampara-o...
- Sim, amparo-o e ajudo-o a ser pai...
- A ser pai..., a ser pai... Mas ele é um homem...
- E eu uma mulher!
- É fraco...
- E eu sou forte?
- Mais do que deve.
- Mais do que devo? Ser uma mulher forte?
- É que essa fortaleza, minha filha, pode por vezes ser dureza, ser crueldade. E é dura para com ele, muito dura. Não o ama para marido? E que importa? Isso não faz falta para casar-se com um homem. Muitas vezes uma mulher tem de casar-se com um homem por compaixão, para não o deixar só, para salvá-lo, para salvar a sua alma...
- Mas eu não o deixo só,,,
- Sim, sim, deixa-o só. E creio que me compreende sem lhe explicar mais claro.
- Sim, sim, compreendo-o, mas eu não quero compreendê-lo. Ele não está só. Quem está só sou eu! Só..., só..., sempre só...
- Mas já sabe isso de que «mais vale casar que abrasar...»
- Mas não me abraso...
- Não se queixa da sua solidão?
- Não é solidão de abrasar, não é essa a solidão que alude, padre. Não, não é essa. Não me abraso.
- E ele abrasa-se?
- Que se refresque no cuidado e amor de seus filhos.
- Bom; mas sabe o que quero dizer.
- Demasiado.
- E se não, digo-lhe ainda mais claro que seu cunhado corre perigo, e que se cai nele, a culpa é sua.
- Minha?
- Está claro!
- Não vejo tão claro. Como não sou homem...
- Disse-me que um dos receios de casar-se com seu cunhado era o de ter filhos dele, não é assim?
- Sim, assim é. Se tivéssemos filhos, chegaria a ser, quisesse ou não, madrasta dos que a minha irmã me deixou.
- Mas o matrimónio não se instituiu só para fazer filhos.
- Para casar e agradecer a Deus e criar filhos para o céu.
- Agradecer a Deus... Percebe?
- Apenas...
- Viver em graça, livres de pecado.
- Agora ainda menos percebo.
- Bom, pois que é um remédio contra a sensualidade.
- Como? Que é isso? Quê?
- Mas, porque fica assim?... Porque se altera?...
- Que é o remédio contra a sensualidade? O casal ou a mulher?
- Os dois... A mulher... e... o homem.
- Pois, não, padre, não, não e não. Eu não posso ser remédio contra nada! Que ideia é essa de considerar-me remédio? E remédio... contra isso! Não, creio que valho mais...
- E se antes de ter perguntado a sua irmã lhe tivesse perguntado...
- A mim? Antes? Quando nos conheceu? Não falemos mais, padre, que não nos podemos entender, pois vejo que falamos línguas diferentes. Nem sei a do senhor, nem o senhor sabe a minha.
           E dito isto, levantou-se do confessionário. Custava-lhe andar; tão doridos tinham ficado os joelhos do ajoelhar. E ao mesmo tempo doíam-lhe as articulações da alma, e sentia a solidão mais intensamente que nunca. «Não, não me percebe – dizia para si -, não me percebe; homem, enfim! Mas, percebo-me eu mesma? Percebo? Amo-o ou não o amo? Não é isto soberba? Não será a triste paixão solitária do arminho, que para se não sujar não se deita a nado a um lodaçal para salvar o seu companheiro?... Não sei..., não sei...» 

(:68-9)


 
Miguel de Unamuno. A Tia Tula. Verbo [Livros RTP, nº 11]